Canto x Fala
“Você já foi à Bahia?” é um dos sambas mais conhecidos de Dorival Caymmi. Esta canção emprestou seu nome ao desenho animado de Walt Disney, que faturou o Oscar de melhor trilha sonora, composta por Ary Barroso e Caymmi. É com esta belíssima composição que vamos compreender como se dá a relação entre fala e canção na música popular brasileira.
Experimente falar os seguintes versos iniciais do samba de Caymmi:
“Você já foi à Bahia, nega
Não?
Então, vá”
Agora cante os versos com a melodia original da canção. Certamente, caro leitor, você percebeu que a melodia da entonação da sua fala se assemelhou à melodia da canção. Isso ocorreu porque, inconscientemente, é assim que os cancionistas criam, isto é, estabilizando as entonações da fala cotidiana.
Facilmente identificamos nestes versos duas perguntas (Você já foi à Bahia? e Não?); um vocativo, isto é, com quem se fala (nega); e uma frase conclusiva (Então, vá.). Pois bem. Não é verdade que, quando fazemos uma pergunta, a melodia da nossa fala se dirige à região aguda com a intenção de criar uma expectativa de resposta? Pois com a melodia da canção ocorre a mesma coisa. Também não é verdade que, quando fazemos uma afirmação, nossa entoação busca a região grave? Como Caymmi tinha absoluta certeza de que qualquer ser humano se encantaria com a sua terra natal, com duas palavrinhas e uma melodia que repousa na região grave, ele pede ao seu interlocutor que vá visitá-la. Entre esses enunciados está o vocativo, na região grave, como se estivesse entre vírgulas. Experimente falar a seguinte frase: “Você, Carlos, não poderá sair de casa hoje”, e verá que a melodia da sua fala novamente buscará a região grave quando enunciar o vocativo “Carlos”. Note que, na frase escrita, o vocativo também está entre vírgulas
Conclusão: é com o material melódico existente em nossa fala cotidiana que os compositores de canção popular trabalham, por isso é que muitos deles não precisam nem ser músicos para compor obras encantadoras.
Preste atenção nas melodias das canções que você ouve diariamente e perceberá sua semelhança com a melodia da nossa fala cotidiana. É por essas e outras que a teoria Semiótica da Canção diz que “a canção é a extensão estética da fala”.